CACADORES DE ANDROIDES

Mantive-me propositadamente distante do debate político nos últimos meses, desde que ficou claro que Bolsonaro iria assumir.
Não tenho ilusões quanto ao governo que está sendo tocado por militares, nem quanto ao regime - que não mais é democrático, mas militar. Sim, vivemos um regime militar a partir de eleições democráticas.
Digo isso por alguns pontos que parecem bem claros. Os objetivos do regime são militares: ordem, enquadramento do Estado, posicionamento de poder diante do mundo. Os meios também, autoritários e avessos a qualquer resposta aos outros poderes. O ideário é centralista e nada dialogante, assumindo verdades a priori e não se importando com as opiniões de amplas parcelas da sociedade. O objetivo é extirpar outra parte política, de oposição, sem se dar ao trabalho de justificar qualquer posição.
Claro que esses pontos não são assumidos assim, sem mais nem menos. É o momento em que, assumido o poder, o poder muda de cara, para fingir que é algo que não é, nem nunca pretendeu ser. É o momento de jogo de aparências. Não é aa toa que todos parecem perdidos, sem saber para onde olhar. Em que mesmo os posicionamentos mais claros aparecem dúbios, em que mesmo as obviedades mais ululantes parecem esmaecidas. Nem adianta gritar mais aa turba. Não existe mais ninguém disposto a ouvir. Pois aos poucos também o regime passa a assumir sua verdadeira face.
Mas vou tentar ser didático. Não irei entrar em muitos detalhes porém quanto aa argumentação. São pontos retirados de minha experiência. No fundo, o tempo dirá.

O REGIME

Todo governo é ditado por vontades. A vontade política do governo Lula era reformista, estrutural, de índole assistencialista, e pouco questionador do trabalho das instituições. Depois, ele passou a questionar mais, e se tornou em parte desenvolvimentista. Depois, ele perdeu-se nas artimanhas do poder mais negocial.
Este governo bolsonaro é intervencionista, conjuntural, de índole autoritária e disseminador do ódio contra a oposição. Isso ele deixou bem claro, o presidente, durante a campanha. Como o próprio presidente é de origem militar, seus valores são em grande medida militares, de encarar o outro como um opositor, e não como alguém com quem é preciso dialogar. Ele tem apoio de boa parte da população e da mídia, e não pretende ceder em sua sanha. Sabe que não pode intervir a torto e a direito em todo o país, mas é o que no fundo quer. Não tem índole democrática, algo que já deixou bem claro diversas vezes. Dispenso ilações mais presas ao caráter individual do presidente e de sua família.
Muitos irão dizer que o regime é democrático porque as instituições seguem os parâmetros ditados pelo bem comum e pela lei. Não é bem verdade, isso. Os parâmetros fornecidos para as instituições são em grande parte oferecidos por meios democráticos, sim, mas também embebidos por uma cultura do privilégio de minorias. De outra parte, o procedimentalismo democrático, num país de índole autoritária, é diuturnamente ameaçado por atitudes discricionárias, com as quais o atual presidente concorda. E tirante algumas exceções poucos são os que insistem em seguir a letra da lei. Tudo vira um casuísmo que a depender do caso faz um pouco mais de marola, apenas. O presidente não está a fim de questionar tudo isso. Ele no fundo quer jogar o jogo de força quando as posições o incomodarem. E para isso apenas ainda não jogou todas as cartas da manga. Nem jogou uma, ainda, que seja. E ele tem muitas.
POSICIONAMENTOS RECENTES
Dispensarei entrar no mérito de escândalos recentes. Todos eles eram previsíveis, e perder tempo neles evita dar importância ao panorama, que é mais relevante. O caso Ônix, o caso Flávio, o caso Salles, o caso mais recente do ministro entregador de mesadinha para laranjas, são apenas casos de ocasião, em que as aparências ficam então em segundo plano. Nem irei comentar a oposição da Globo, endividada, em função de posicionamentos durante a eleição. O caso Brumadinho fica bem patente quanto ao meio militar de intervenção. A perda de paciência de alguns militares já era de se esperar. O militar não considera no fundo legítimo que se questione o andamento das coisas do poder. E ele deixa isso bem claro quando prefere fazer pronunciamentos ao invés de se preocupar com a accountability de suas ações. Isso para ele é frufru, mimimi da sociedade (para usar uma expressão que já se tornou célebre).
Bolsonaro, quando escrevo isto, ainda está no hospital, e seu estado pode perigar a piorar com o tempo, por mais que façam em prol de sua saúde. Isso porque ele está sendo sujeito a muitas pressões, e porque seu caso não é simples. No fundo, ele é uma espécie de Costa e Silva que se vê em meio a jogos de poder complexos e pesados. No fundo, ele jogou a batata quente a sua equipe, na medida em que quer aprovar uma série de medidas em relação aas quais parece não experimentar qualquer oposição. Digo parece porque a intenção da mídia, endividada, é de deixar quieto, em sua maioria. Nem mais são divulgados números da recessão, pois é como se ela no fundo não acontecesse. Estima-se que tudo agora seja novo, sabendo que lidamos com gente velha, de índole velha, e com práticas velhas.
Ainda não foi reinstalada a censura. Mas a prévia já existe. Não se pensa mais no interesse público ao publicar alguma coisa. Pensa-se melhor em como fazer algo que pareça jornalístico ou democrático sem incomodar o poder que acaba de assumir o poder. Pensa-se em como fingir aparências. Ninguém mais assume o risco de dizer efetivamente o que pensa. Porque a regra agora é a de exceção, sob a chancela do poder federal. Os outros seguem-no de roldão.
Chega a ser engraçado (se pudessemos pensar assim) como a imprensa trata com benevolência o vice militar, o Mourão. Benevolência para não dizer condescendência ou subserviência, ou malemolência. Por vezes ele é tido como um contraponto aa bizarrice de Bolsonaro, outras como um bastião até certo ponto democrático (olha só), outras como um bichinho de estimação. Começou o puxa-saquismo de uma imprensa que perdeu todo o afã crítico que poderia ainda ter. Mourão é o representante de algo esclarecido em um governo que se supõe militarizado com os animalizados do saber militar. E o saber civil se coloca em posição subserviente, aas vistas de todos, o que antes teria causado náuseas. Mas hoje ninguém liga. Tornou-se a regra por excelência num momento de perda absoluta de referências em termos de democracia formal.

A DEMOCRACIA QUE PERDEMOS

Pode-se pensar que tivéssemos um regime democrático. Não creio que fosse bem assim. Mais bem tínhamos um regime de democracia formal vigiado por instituições discricionárias. Por outro lado, a esquerda que detinha o poder também nunca foi claramente democrática. Sabemos disso, não pela origem de seus integrantes, mas pelas suas práticas de rolo compressor em assuntos que propriamente lhe diziam respeito, e pela inapetência em conciliar interesses, algo que tanto não conseguia fazer que comprava votos ou carreiras. Uma esquerda que nunca será democrática, na medida em que, assim como a direita, demoniza quem a ela se opõe, por meios os mais diretos ou indiretos, taxando os opositores de aparências que só indicam seus falsos preconceitos. Pois a esquerda não se opõe firmemente ao capital, ela o utiliza em seus fins, apenas isso. Ela também não se opõe claramente á tradição católica, ela o considera inadequado aos seus fins de maniputação, tão somente isso. Ela também não é propriamente tolerante. Ela simplesmente assume que jamais terá todo o domínio dos corpos e das mentes, e a isso se conforma, quando pode assumir uma postura mais coerente.
Claro que não estou me referindo aqui a parcelas de gente simpatizante da esquerda, que não convive com o real jogo do poder. Refiro-me apenas aaquele tipo de jogo de poder que é tido como de esquerda, quando é apenas o de acobertamento de intenções por meio de domínio do espaço. Um jogo de quem de fato sabe como é o poder, e como dominar o jogo.
Esses, que se mantêm aa margem, não sabem mais como se opor ao sistema, tal como se apresenta, e descansam em discursos de oposição tênues, tímidos, compungidos, em que não parecem mais identificar nada que lhes possa causar algum indício de esperança. De fato, essa leva de gente de suposta esquerda não entende mais como o jogo se dá, e em primeiro lugar nem compreende que seu momento já se deu e que a curto prazo não irá voltar mais, talvez nem a médio prazo. Esse tipo de gente vive um momento em que acredita na manutenção de um momento democrático, quando na verdade ele já se foi, e esse tipo de gente não quer nisso acreditar. Quem vivencia o poder sabe que esse momento não volta mais, e que será necessário um outro jogo de forças para que isso se dê - com alguma esperança.

UM BREVE APANHADO DE ALGUMA ESPERANÇA

Tal como quando os militares assumiram o poder em 1964, desta feita o desenrolar do momento histórico se dará na medida do efetivo compromisso de quem foi democrata com seus pressupostos de civilidade. Ou seja, a bola está com a imprensa e com aqueles que efetivamente se consideram defensores da liberdade de expressão e de imprensa (coisas diferentes), do direito de minorias, do efetivo cumprimento das leis e dos procedimentos jurídicos, etc e tal. Ou seja, na medida em que o poder seja defrontado com seus pressupostos de accountability, e não deixado sozinho com suas diatribes de poder. Mas para isso é necessário algo mais do que simplesmente denunciar. É preciso mostrar a cara do monstro, quando ele aparece, e deixar claro como ele é, sem medo das consequências.
Tudo isso deve ficar bem claro porém em um aspecto especial: não se pode esperar resultados para quem faz o trabalho mais duro. Se haverá alguém que poderá fazer o jogo virar não será destas gerações, mas das próximas. Isso sempre aconteceu. Sempre foi preciso que alguém aplainasse o caminho para quem veio depois. Não se pode esperar algo diferente. E o trabalho agora é de décadas. Não se espere algo diferente, na medida em que o poder na mão dos militares hoje é um contraponto até mesmo aa volta da democracia, em 1988. Ou seja, trabalho de mais de três décadas.
Todos contribuíram para o atual estado de coisas. Todos, e muito especialmente a esquerda, que dinamitou qualquer possibilidade de união entre si, esperando uma radicalização maior que lhe desse espaço para seu próprio poder discricionário. A esquerda brasileira nunca foi democrática, e nunca pretendeu ser - nem nunca será. Isso porque a democracia é sutil demais para os jogos que aparecem quando surgem os contratos de alta monta.
(feito quase a pedido da querida Renata Sayuri, que me questionou por inbox)

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